27/04/2020
– Profª Érica Chichera- Língua Portuguesa – 9º B e C
Leitura
do conto
Entre
a espada e a rosa
Marina
Colasanti
Parte
1
Qual é a hora de casar, senão
aquela em que o coração diz "quero"? A hora que o pai escolhe. Isso
descobriu a Princesa na tarde em que o Rei mandou chamá-la e, sem rodeios, lhe
disse que, tendo decidido fazer aliança com o povo das fronteiras do Norte, prometera
dá-la em casamento ao seu chefe. Se era velho e feio, que importância tinha
frente aos soldados que traria para o reino, às ovelhas que poria nos pastos e
às moedas que despejaria nos cofres? Estivesse pronta, pois breve o noivo viria
buscá-la. De volta ao quarto, a Princesa chorou mais lágrimas do que acreditava
ter para chorar. Embotada na cama, aos soluços, implorou ao seu corpo, a sua
mente, que lhe fizesse achar uma solução para escapar da decisão do pai.
Afinal, esgotada, adormeceu. E na noite sua mente ordenou, e no escuro seu
corpo ficou. [...]
Parte
2
[…] E ao acordar de manhã, os
olhos ainda ardendo de tanto chorar, a Princesa percebeu que algo estranho se
passava. Com quanto medo correu ao espelho! Com quanto espanto viu cachos
ruivos rodeando-lhe o queixo! Não podia acreditar, mas era verdade. Em seu
rosto, uma barba havia crescido. Passou os dedos lentamente entre os fios
sedosos. E já estendia a mão procurando a tesoura, quando afinal compreendeu.
Aquela era a sua resposta. Podia vir o noivo buscá-la. Podia vir com seus
soldados, suas ovelhas e suas moedas. Mas, quando a visse, não mais a quereria.
Nem ele nem qualquer outro escolhido pelo Rei. Salva a filha, perdia-se porém a
aliança do pai. Que tomado de horror e fúria diante da jovem barbada, e
alegando a vergonha que cairia sobre seu reino diante de tal estranheza,
ordenou-lhe abandonar o palácio imediatamente. A Princesa fez uma trouxa
pequena com suas jóias, escolheu um vestido de veludo cor de sangue. E, sem
despedidas, atravessou a ponte levadiça, passando para o outro lado do fosso.
Atrás ficava tudo o que havia sido seu, adiante estava aquilo que não conhecia.
Na primeira aldeia aonde chegou, depois de muito caminhar, ofereceu-se de casa
em casa para fazer serviços de mulher. Porém ninguém quis aceitá-la porque, com
aquela barba, parecia-lhes evidente que fosse homem. Na segunda aldeia,
esperando ter mais sorte, ofereceu-se para fazer serviços de homem. E novamente
ninguém quis aceitá-la porque, com aquele corpo, tinham certeza de que era
mulher. Cansada mas ainda esperançosa, ao ver de longe as casas da terceira
aldeia, a Princesa pediu uma faca emprestada a um pastor, e raspou a barba.
Porém, antes mesmo de chegar, a barba havia crescido outra vez, mais cacheada,
brilhante e rubra do que antes. Então, sem mais nada pedir, a Princesa vendeu
suas jóias para um armeiro, em troca de uma couraça, uma espada e um elmo. E,
tirando do dedo o anel que havia sido de sua mãe, vendeu-o para um mercador, em
troca de um cavalo. Agora, debaixo da couraça, ninguém veria seu corpo, debaixo
do elmo, ninguém veria sua barba. Montada a cavalo, espada em punho, não seria
mais homem, nem mulher. Seria guerreiro. E guerreiro valente tornou-se, à
medida que servia aos Senhores dos castelos e aprendia a manejar as armas. Em
breve, não havia quem a superasse nos torneios, nem a vencesse nas batalhas. A
fama da sua coragem espalhava-se por toda parte e a precedia. Já ninguém
recusava seus serviços. A couraça falava mais que o nome. Pouco se demorava em
cada lugar. Lutava cumprindo seu trato e seu dever, batia-se com lealdade pelo
Senhor. Porém suas vitórias atraíam os olhares da corte, e cedo os murmúrios
começavam a percorrer os corredores. Quem era aquele cavaleiro, ousado e
gentil, que nunca tirava os trajes de batalha? Por que não participava das
festas, nem cantava para as damas? Quando as perguntas se faziam em voz alta,
ela sabia que era chegada a hora de partir. E ao amanhecer montava seu cavalo,
deixava o castelo, sem romper o mistério com que havia chegado. Somente
sozinha, cavalgando no campo, ousava levantar a viseira para que o vento lhe
refrescasse o rosto acariciando os cachos rubros. Mas tornava a baixá-la, tão
logo via tremular na distância as bandeiras de algum torreão. Assim, de castelo
em castelo, havia chegado àquele governado por um jovem Rei. E fazia algum
tempo que ali estava. Desde o dia em que a vira, parada diante do grande
portão, cabeça erguida, oferecendo sua espada, ele havia demonstrado preferi-la
aos outros guerreiros. Era a seu lado que a queria nas batalhas, era ela que
chamava para os exercícios na sala de armas, era ela sua companhia preferida,
seu melhor conselheiro. Com o tempo, mais de uma vez, um havia salvo a vida do
outro. E parecia natural, como o fluir dos dias, que suas vidas transcorressem
juntas. Companheiro nas lutas e nas caçadas, inquietava-se porém o Rei vendo
que seu amigo mais fiel jamais tirava o elmo. E mais ainda inquietava-se, ao
sentir crescer dentro de si um sentimento novo, diferente de todos, devoção mais
funda por aquele amigo do que um homem sente por um homem. Pois não podia saber
que à noite, trancado o quarto, a princesa encostava seu escudo na parede,
vestia o vestido de veludo vermelho, soltava os cabelos, e diante do seu
reflexo no metal polido, suspirava longamente pensando nele. Muitos dias se
passaram em que, tentando fugir do que sentia, o Rei evitava vê-la. E outros
tantos em que, percebendo que isso não a afastava da sua lembrança, mandava
chamá-la, para arrepender-se em seguida e pedia-lhe que se fosse. Por fim, como
nada disso acalmasse seu tormento, ordenou que viesse ter com ele. E, em voz
áspera, lhe disse que há muito tempo tolerava ter a seu lado um cavaleiro de
rosto sempre encoberto. Mas que não podia mais confiar em alguém que se escondia
atrás do ferro. Tirasse o elmo, mostrasse o rosto. Ou teria cinco dias para
deixar o castelo. Sem resposta, ou gesto, a Princesa deixou o salão,
refugiando-se no seu quarto. Nunca o Rei poderia amá-la, com sua barba ruiva.
Nem mais a quereria como guerreiro, com seu corpo de mulher. Chorou todas as
lágrimas que ainda tinha para chorar. Dobrada sobre si mesma, aos soluços,
implorou ao seu corpo que lhe desse uma solução. Afinal, esgotada, adormeceu. E
na noite seu mente ordenou, e no escuro seu corpo brotou. [...]
Parte
3
[...] E ao acordar de manhã, com
os olhos inchados de tanto chorar, a Princesa percebeu que algo estranho se
passava. Não ousou levar as mãos ao rosto. Com medo, quanto medo! Aproximou-se
do escudo polido, procurou seu reflexo. E com espanto, quanto espanto! Viu que,
sim, a barba havia desaparecido. Mas em seu lugar, rubras como os cachos, rosas
lhe rodeavam o queixo. Naquele dia não ousou sair do quarto, para não ser
denunciada pelo perfume, tão intenso, que ela própria sentia-se embriagar de
primavera. E perguntava-se de que adiantava ter trocado a barba por flores,
quando, olhando no escudo com atenção, pareceu-lhe que algumas rosas perdiam o
viço vermelho, fazendo-se mais escuras que o vinho. De fato, ao amanhecer,
havia pétalas no seu travesseiro. Uma após a outra, as rosas murcharam,
despetalando-se lentamente. Sem que nenhum botão viesse substituir as flores
que se iam. Aos poucos, a rósea pele aparecia. Até que não houve mais flor
alguma. Só um delicado rosto de mulher. Era chegado o quinto dia. A Princesa
soltou os cabelos, trajou seu vestido cor de sangue. E, arrastando a cauda de
veludo, desceu as escadarias que a levariam até o Rei, enquanto um perfume de
rosas se espalhava no castelo.
COLASANTI,
Marina. Entre a espada e a rosa. Rio de Janeiro: Salamandra, 1992
Biografia Marina Colasanti (1937)
Marina Colasanti nasceu na cidade de Asmara, capital da Eritréia, na África, no
dia 26 de setembro de 1937. Morou em Trípoli, na Líbia e depois na Itália. Em
1948 veio para o Brasil, instalando-se no Rio de Janeiro. Formou-se em Artes
Plásticas. Marina Colasanti é autora de mais de 50 títulos publicados no Brasil
e no exterior, é uma das mais premiadas escritoras brasileiras. Entre eles
destacam-se: diversos Prêmios Jabuti da Câmara Brasileira do Livro – 1993 –
“Entre a Espada e a Rosa”, 1994 – “Rota de Colisão”, 1994 – “Ana Z, Aonde Vai
Você?”, 1997 – “Eu Sei Mas Não Devia”, 2010 – “Passageira Em Trânsito”, 2011 –
“Antes de Virar Gigante” e 2014 – “Breve História de Um Pequeno Amor”. Foi
também premiada diversas vezes pela Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil (FNLIJ). Em 2011 recebeu o Prêmio Portugal Telecom de Literatura – 3º
lugar, com “Minha Guerra Alheia”.
Disponível em:
https://www.ebiografia.com/marina_colasanti/. Acesso em: 30/07/2018.
Orientações
/ Atividades:
Faça a leitura do conto e
respondas as questões abaixo:
Conto: Entre a espada e a rosa.
1)
Quem
são as personagens do conto?
2)
São
personagens conhecidas?
3)
Onde
e quando a história se passa?
4)
A
primeira pergunta feita pelo narrador no início do texto foi respondida? Como?
5)
O
que a mente da Princesa poderia ter ordenado?
6)
Qual
a diferença do encerramento dessa história para um conto de fadas conhecido?
7)
Por
que vocês acham que a autora não terminou a história com o famoso clichê “E
viveram felizes para sempre...?”
8)
Vocês conseguem comparar a personagem principal da história
com alguma personagem de filme de animação? Qual?
9)
O
que há em comum no comportamento das duas personagens protagonistas?
10) Como relacionar o perfil dessas
personagens com o papel da mulher na sociedade atual?
Após atividade acima do Conto:
Entre a espada e a rosa, peco que realize outra leitura do conto “ A
cartomante” de Machado de Assis, como atividade extraclasse.
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